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Entrevista com a professora Isabel Órfão

Leonor Sousa, 12.º B

O envelhecimento da classe docente tem implicado reformas em grande escala e a nossa escola não é exceção. Porém, temos connosco uma professora que, já há muitos anos, escolhe não o fazer. Veio trabalhar para a Escola Secundária Dr. Mário Sacramento no início da sua segunda década de vida (o que faz de si a professora mais antiga da escola) e durante a sua carreira ocupou cargos de direção e de natureza pedagógica.

Para descobrir mais, fomos falar com a professora de Matemática, Isabel Órfão.

Com Efeito (C.E.) - Bom dia professora!

Professora Isabel Órfão (P.I.O.) - Bom dia, bora lá!

C.E.- Ora bem, em primeiro lugar: considera que existem diferenças notórias entre os alunos de hoje e os alunos do início da sua carreira?

P.I.O. - Não.

C.E. - Nenhuma?!

P.I.O. - Não. Os contextos é que são muito diferentes dos que existiam quando comecei a minha carreira, já lá vão muitos anos.

C.E.- Deu reguadas?

P.I.O. - Não! Eu é que levei reguadas, quando era aluna da «escola primária», hoje primeiro ciclo. Comecei a lecionar em 76, dois anos depois do 25 de abril ter derrubado a ditadura; a democracia dava os primeiros passos, no meio de muita agitação social e de um extraordinário confronto de ideias que passava das ruas para todos os setores da sociedade, incluindo a escolas; era impensável um professor dar reguadas! Eu comecei a dar aulas quando ainda andava a tirar o meu curso no Porto. A licenciatura era de 5 anos e com 3 anos de curso já se obtinha o bacharelato e ficava-se com habilitações próprias para lecionar Matemática. Eu frequentava o curso de matemática por opção, ou seja, na época não havia um limite de vagas para os cursos, nem exames obrigatórios. Quando nós acabávamos o ensino secundário, não havia 12º ano, ainda. Portanto, o ensino liceal terminava no sétimo ano, correspondente ao atual 11.º ano. As meninas que, como eu, frequentavam o liceu feminino, atual escola Homem Cristo, usavam obrigatoriamente batas com uma fila de botões que sinalizava o ano que frequentávamos, isto é, 6 botões indicavam que eramos alunas do 6.º ano! O liceu masculino era a atual Escola José Estêvão. Adiante, para entrar na universidade, quem tinha média superior, salvo erro, a 17, nem sequer precisava de fazer exames. E eu dispensei dos exames, como muitos outros colegas dispensaram. Os outros colegas, faziam o chamado “Exame de aptidão” à universidade. Portanto, nós chegávamos à secretaria da reitoria da universidade que queríamos e inscrevíamo-nos no curso que pretendíamos. Na altura, o meu pai aconselhou-me: “Vais para o Porto”; e eu: “Vou para o Porto!” Eu fui para o Porto e lembro-me perfeitamente de estar a subir as escadas para chegar à secretaria da reitoria e de o meu pai me perguntar: “Mas afinal para que curso é que vais?” e eu: “Já se vê!”. E não tinha verdadeiramente decidido qual era o curso. Ou melhor, eu já tinha um sentido de qual era o curso. E pronto, matriculei-me em Matemática, mas havia 3 ramos de Matemática: Matemática “pura”, Matemática aplicada e Matemática “ramo educacional”. Estes cursos eram iguais até ao bacharelato, isto é, nos primeiros 3 anos, só depois é que se especificavam as cadeiras.

C.E. - A Matemática “pura” servia para quê?

P.I.O. - Mais para a investigação. Percebes? Aquelas mentes de génios. Como aquele meu colega que estava nas aulas, mas não tirava apontamentos. Estava todo refastelado e tinha um caderninho de

capa vermelha e tamanho pequenino, onde, assim muito de vez em quando, escrevia uma coisita qualquer, enquanto eu estava desesperada por colocar nos apontamentos tudo o que o professor dizia. Seguiu esse ramo e é professor universitário.

Acabei por enveredar pelo ramo educacional e, como na época havia muita facilidade em arranjar colocação numa escola, concorri. Fiquei colocada exatamente na escola que quis: a meio caminho entre a casa onde vivia e a faculdade. Daí ter começado muito cedo a trabalhar e mais, consegui fazer os 2 anos que me faltavam para concluir a licenciatura, incluindo o estágio, nessa mesma escola onde já estava a dar aulas como professora «provisória». Tinha 5 turmas, uma era de miúdos e, há pouco tempo, encontrei uma fotografia em que estou a jogar badminton com eles, durante uma visita de estudo. As outras turmas eram todas no ensino noturno e os alunos eram todos mais velhos do que eu! Aliás, habituei-me a tratar esses alunos por «o senhor José», a «D. Luísa»,… e mantive essa forma de me relacionar com os alunos dos cursos noturnos que lecionei nesta nossa escola, durante largos anos.

C.E. - E pensa que, agora, os alunos faltam mais ao respeito?

P.I.O. - Eu não tenho muito bem essa perceção. Tenho tido muita sorte, a verdade é essa! Já estive envolvida em situações conflituosas com alunos. Porém, não comungo dessa ideia de que os alunos agora estão muito piores e os alunos de antigamente é que eram bons. Nada disso.

C.E. - Certo, que bom! Entretanto, aproveitando para passar à próxima pergunta, sente-se realizada com o trabalho que desenvolveu ao longo da sua carreira como professora?

P.I.O. - Completamente. Tudo o que tinha para fazer está feito e como queria. Em termos de aulas e de alunos, acho que sim, estou completamente bem resolvida comigo própria. Com os alunos, nunca tive e nunca tenho aquela noção: “Estes miúdos... Vou, mas é embora, que não estou aqui a fazer nada.”. Com a escola, já não é bem assim. Aquilo a que eu me agarro sempre é às aulas, aos alunos. Porque é aí que me sinto recompensada a 100%. Ultimamente, já não me reconheço tanto da escola atual. Já não me sinto particularmente feliz. Não é que não me sinta realizada, mas a sociedade exige cada vez mais à escola e, particularmente aos professores, o que não tem deixado espaço para as pessoas refletirem, discutirem e tomarem decisões partilhadas sobre outros aspetos que fazem parte do dia a dia da escola e do ser professor. Há mudanças que têm que ser feitas e, por vezes, sinto que não temos sequer a oportunidade de descodificar a mensagem que nos chega… toca a fazer, e pronto! E eu não vou muito nessa onda ... Gosto mais de estudar e com outras pessoas partilhar e chegar a consensos e isso já não se faz há anos. Esta é a visão democrática que eu tenho da escola em que a discussão promove o entendimento e o bem estar profissional .

C.E. - À próxima pergunta, já respondeu: O que é que a motiva a continuar a dar tudo de si aos seus alunos e à escola?

P.I.O. – Pois já! É acreditar neles. Acreditar que qualquer indivíduo pode aprender matemática e melhorar (não que isso lhes traga a suprema felicidade, porque essas melhorias são com frequência associadas (um pouco erradamente) às altas notas e entrada neste ou naquele curso). É isso que me dá prazer. Normalmente, relaciono-me bem com os alunos e a minha vida profissional é importante na minha vida pessoal. Nas aulas, envolvo-me no que estamos a fazer e esqueço-me do resto, incluindo problemas pessoais, e vice-versa. Estou sempre à procura de um equilíbrio que me mantenha com garra para aquilo que estou a fazer.

C.E. - Bom mantra! Próxima questão: Nós sabemos que está no Conselho Pedagógico e foi Presidente do Conselho Diretivo. Desempenhar estes cargos traz-lhe certamente uma perspetiva particular sobre a escola e o seu funcionamento. Já explicou um bocadinho como é. Pode explicar também os cargos que ocupou?

P.I.O. - Eu vim para cá com 22 anos e os meus colegas diziam “Oh Isabel, não vás para Aveiro, concorre para o Porto.” e eu disse “Não. Os meus pais vivem em Aveiro, vou para Aveiro, o tempo aqui já passou.”. Concorri para Aveiro e fiquei colocada como professora efetiva em Carregal do Sal. Eu disse “Não vou para Carregal do Sal” e concorri para orientadora de estágio. Tive o prazer de orientar aqui cinco colegas meus (era a mais nova deles todos) que tinham tirado o curso na Universidade de Aveiro, que, entretanto, tinha aberto, e de trabalhar com a minha professora de Matemática do liceu e que era orientadora de estágio na escola José Estêvão. Fomos colegas e ela “ensinou-me” tudo o que sabia da experiência dela como orientadora. Foi muito giro, porque cresci profissionalmente, como é natural. E é nisso que eu acredito – no trabalho colaborativo entre professores, como fonte de enriquecimento profissional. Passados, um ou dois anos, num plenário de professores fui eleita Presidente do Conselho Diretivo após uma votação nominal. Devo ter caído nas boas graças dos meus colegas de então! Fiz a minha equipa, constituída, naturalmente, por professores mais velhos do que eu, de diferentes áreas; eram muito competentes e a equipa funcionou muito bem. Para tu perceberes, o mandato era só por um ano, de acordo com o sistema em vigor na gestão das escolas, após a recente revolução de abril. No ano seguinte, fui eleita novamente e mantive a equipa. Foi uma experiência muito engraçada e gratificante. O conselho diretivo correspondia à atual direção da escola, ainda que com diferenças. Por exemplo, não havia vice-presidente. Fizemos coisas muito giras e tomámos decisões que, hoje, penso que não são possíveis. Organizámos uma semana da escola (sem aulas) e as salas fervilhavam de atividades promovidas pela comunidade escolar com a colaboração de entidades exteriores à escola. Em particular, recordo a realização de uma palestra sobre as Energias Renováveis e dos capacetes com hélice movida a energia solar que os alunos receberam. A agenda da semana foi planificada por mim e pela professora Salete, minha vogal no Conselho Diretivo, de modo a que todas as turmas pudessem participar no maior número de atividades e a escola esteve em peso! A «festa» terminou num sábado, com uma sessão de música no ginásio.

O Conselho Pedagógico tinha praticamente as mesmas funções que tem agora, era um órgão consultivo e constituído por mais de trinta pessoas, docentes e não docentes. Funcionava bem! Discutíamos tudo e as pessoas gostavam de intervir, emitindo a sua opinião. Por vezes, eu comprava uns bolinhos e espalhava pelas mesas porque achava que uma reunião de trabalho não tinha de ser «uma seca». Enquanto membro atual do Conselho Pedagógico, como coordenadora do Departamento de Matemática e Ciências Experimentais, reconheço a importância que este órgão consultivo continua a ter; no entanto, a burocratização que invade muito do trabalho que é da sua competência, retira alguma energia no debate de situações de caráter pedagógico.

Apesar de não ser um cargo, não posso deixar de fazer referência ao facto de ter sido representante da candidatura do nome Mário Sacramento para patrono da escola, o que muito me honra.

C.E. - E ser professora sempre foi um sonho seu?

P.I.O. - Não era propriamente um sonho. Se calhar, familiarmente, estavam todos à espera que fosse para Medicina, porque eu era boa na parte das ciências e ainda não me tinha manifestado quanto ao que queria seguir. O meu pai ficou todo contente quando escolhi Matemática, porque achava que eu “tinha jeito para a coisa”. Na faculdade, arranjei tempo para dar explicações nas casas de duas famílias na Foz do Porto e comecei a ver por aí que tinha resultados. Recordando o meu tempo de liceu, por vezes, a minha professora de Matemática ( e futura colega, como já referi) parava a aula, porque se apercebia que eu estava a explicar a algumas colegas o que não tinham compreendido. A ida para o curso foi uma decisão tomada na hora e da qual não me arrependi, ou seja, tive muita sorte! Provavelmente já sentia essa necessidade de ir para Matemática, porque era, de facto, onde eu sentia que havia uma mais-valia, porque via isso quando ajudava alguém.

C.E. - Durante estes anos deve ter vivenciado bastantes reformas de colegas seus. Como faz para se adaptar?

P.I.O. - Com as reformas dos colegas, lido bem. Às vezes, vamo-nos encontrando. Porém, os colegas não me fazem tanta falta como os alunos. Eu acredito que por muitas formações que se façam em entidades exteriores à escola, não há melhor sítio para aprender do que com os colegas numa atitude de aceitação de uma discussão aberta, sem medo e preconceitos. É muito raro encontrar pessoas que a nível profissional tenham este perfil. Ou seja, com quem eu consiga aprender e que também possam aprendam comigo. A partir de uma determinada altura, é natural estarmos menos recetivos a fazer mudanças na nossa prática letiva e, como é inevitável, trabalhamos melhor com determinados colegas do que com outros. Alguns deles foram embora. Não há nada que possamos fazer! Temos que trabalhar com os colegas que estão ao pé de nós.

Essa partilha constante com outros professores sempre contribui para a melhoria das minhas práticas e, consequentemente, das aprendizagens dos meus alunos mas, acima de tudo, manteve-me entusiasmada com o meu trabalho, ao longo de todos estes anos de ensino, enfrentando as sucessivas reformas e mudanças de ambientes de aprendizagem como uma oportunidade. Preciso sempre de um desafio para me manter com a cabeça a trabalhar na área que gosto: Matemática e o ensino dela. Porque nunca perdi esse “bichinho”, aprecio as oportunidades que os colegas me dão de o manter vivo.

C.E. - Muito bem respondido. Próxima pergunta: Houve alunos que a inspiraram?

P.I.O. - Todos os dias e tenho muitas memórias inspiradoras. Recordo alunos das primeiras turmas do 12.º ano, com mais de 50 alunos e de alunos cujos pais também já tinham sido meus alunos. Inspiram-me os alunos que são desafiantes. Mantenho contacto com alguns deles. Para mim, a resposta a esta pergunta é uma coisa muito óbvia, porque é aí que está o interesse. Os alunos inspiram-me para me colocar no papel do aluno e pensar na melhor forma de ensinar para que ele aprenda. E é isso que me orienta, no processo de ensino. E julgo que está respondido.

C.E. - Está, sim. Última pergunta: De que é que vai sentir mais saudades?

P.I.O. - Dos alunos. Dos alunos e das aulas, sem dúvida alguma. Do resto, nem tanto!

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